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Catulo

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A porta se escancarou de uma vez com um chute violento, e o pé que a chutou imediatamente se plantou no chão dando firme apoio ao cano escuro do bacamarte seguro pela mão que se apoiava naquele pé que invadiu a sala quente da casinhola em Engenho de Dentro, no meio da mata, banhada pelo sol do começo da tarde, e a voz que mandava no pé, na mão e no dedo diante do gatilho gritou furiosa: “Catulo da Paixão Cearense, filho da puta! Tua hora chegou!” O velho ergueu a cabeça desprovida de cabelos, olhou com os olhos por detrás dos óculos arredondados, com um rosto triste e uma boca murcha, segurou o violão levantado e falou, sem pressa e sem alteração: “Quem me dera se eu morresse lá na serra, abraçado à minha terra, e dormindo de uma vez, ser enterrado numa cova pequenina onde à tarde a surunina chora sua viuvez. Coisa mais bela nesse mundo não existe, que ouvir um galo triste no sertão que faz luar. Parece até a alma da lua, que descansa escondida na garganta desse galo, a soluçar”. E m

Cortina de fumaça

“Não nasci para ser presidente”. Nasci para ser cortina de fumaça. E isso, a cortina de fumaça, é a única coisa que conseguimos ver. Outros pensadores levantaram esta hipótese, outros a refutaram, mas tudo parece apontar exatamente para o mesmo lugar: para a fumaça que não deixa ver o que há por trás. Me parece que coisas muito sérias precisam ser debatidas democrática e socialmente, e tudo isso fica por trás do infinito clima de campanha, das acusações, das fake news, dos despautérios, das intrigas, das picuinhas. Isso tudo é um prato cheio para a mídia, que sempre precisa de audiência e aumenta a confusão. Mesmo a reforma da previdência me parece parte da cortina de fumaça. E o que há por trás da cortina de fumaça? O que não nos deixam ver? Mesmo as questões que precisam urgentemente ser respondidas (Quem mandou matar Marielle Franco? Para que servem os 115 fuzis encontrados na casa de um dos executores de Marielle? Onde está Fabrício Queiroz?) parecem alimentar, sem querer, esta cor

Arroz com feijão ou vice-versa

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Sob as arcadas da universidade, à entrada do jardim epicurista que caracteriza todo espaço dedicado ao pensamento crítico genuíno, iluminado pelo sol, agraciado pelas flores, alegrado pelos pássaros, estão Haroldo e Augusto, estudantes daquela prestigiosa instituição, que desenvolvem um debate acerca da mais douta das questões da contemporaneidade: “Indubitavelmente, posto que líquido”, afirmava Haroldo, “o feijão deve ir por cima do arroz. Só assim os dois sabores podem interagir e criar um conteúdo heterogêneo!” “Controverso, dada a incontestável questão da liberdade”, rebatia Augusto, “que debita ao que come a medida da quantia de um e de outro a ser misturada a cada garfada”. Chegaram a tal impasse e encontraram-se incapazes de dirimir a questão com seus argumentos. Já que são doutorandos, consideraram fora de questão resolver a pendenga aos socos, e finalmente concordaram em alguma coisa: levar tão intrigante pergunta ao professor Gilbert, nascido na França e um verdadeiro

Tome um gim

Só pode ser frustração. E uma frustração pesada, dessas que parecem um coice. Só frustração levaria um sujeito tão bem vestido, tão bem barbeado e penteado a sentar-se no balcão do bar e tomar meia garrafa de gim sozinho, sem falar com ninguém, com uma cara cansada de quem teve um dia péssimo. Vai saber qual frustração deu na orelha dele com tanta força. Chifre, demissão, segredo revelado, puxada de tapete, saída do armário, vai saber… Se bobear, é um cara desses que entra em algum lugar com duas pistolas e atira em um monte de gente que não tem nada a ver com suas frustrações, só para depois perceber a merda que está fazendo e estourar os próprios miolos. Ou que insiste em dirigir bêbado como uma vaca e matar outras pessoas que também não tem nada a ver com suas frustrações, vira capa de jornal, vai preso, gera discussões na mídia e faz nossos parlamentares pelo menos conversarem sobre algo além de seus próprios benefícios. Ou, o que seria melhor, pelo menos para nós que não temos nad
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Em 2010 eu cursava o mestrado na PUC-SP. No segundo semestre tive um problema técnico para fazer minha rematrícula on line e precisei ir fisicamente à faculdade. Claro, deixei para a última hora e, quando cheguei lá, só havia uma vaga disponível, na disciplina da Profa. Dra. Jerusa Pires Ferreira, Semiótica Russa e seus desdobramentos na América Latina. Eu estudava o Pato Donald desenhado por Carl Barks, um produto de comunicação de massa norte-americano desenvolvido como pro duto conforme a lógica capitalista, e não consegui de maneira nenhuma imaginar como a semiótica russa me ajudaria na dissertação (e é bom que se diga também que eu era bem mais tonto do que sou hoje). A atendente da secretaria disse que eu precisava me inscrever de qualquer jeito, e que poderia chegar a um acordo quanto a qual aula acompanhar direto com os professores. Não pude falar com minha orientadora, a Profa. Dra. Lucia Leao , antes da primeira aula, e fui lá com a cara e a coragem dizer pra