Tome um gim
Só pode ser frustração. E uma frustração pesada, dessas que parecem um coice. Só frustração levaria um sujeito tão bem vestido, tão bem barbeado e penteado a sentar-se no balcão do bar e tomar meia garrafa de gim sozinho, sem falar com ninguém, com uma cara cansada de quem teve um dia péssimo. Vai saber qual frustração deu na orelha dele com tanta força. Chifre, demissão, segredo revelado, puxada de tapete, saída do armário, vai saber… Se bobear, é um cara desses que entra em algum lugar com duas pistolas e atira em um monte de gente que não tem nada a ver com suas frustrações, só para depois perceber a merda que está fazendo e estourar os próprios miolos. Ou que insiste em dirigir bêbado como uma vaca e matar outras pessoas que também não tem nada a ver com suas frustrações, vira capa de jornal, vai preso, gera discussões na mídia e faz nossos parlamentares pelo menos conversarem sobre algo além de seus próprios benefícios. Ou, o que seria melhor, pelo menos para nós que não temos nada a ver com suas frustrações, é um desses que afoga as mágoas e as raivas na bebida, que não tem ninguém, que se deixa submergir pelo álcool e que um dia amanhece morto e ninguém dá pela falta.
Essa coisa toda tem muita cara de mal-estar contemporâneo. Nossas relações, todas elas, relações com as outras pessoas, com o trabalho, conosco mesmos, com o futuro, estão todas podres, fedem a carniça, atraem abutres. Daí nos isolamos. Conviver com outros é correr o risco de ser chifrado, demitido, exposto, humilhado, e não conseguimos mais lidar com isso. Preferimos cachorrinhos, entrega total sem nenhuma cobrança. Preferimos nossos celulares, mundos particulares e customizados até onde permitem os templates. Todos os outros humanos são competidores, nossos rivais, nos destruirão assim que tiverem uma chance, uma brecha. Então preferimos a distância, estratégica, aquela que nos permite observar e ficar alertas.
Mas nenhum ser humano é uma ilha, já disse o poeta. Precisamos de algum contato, e aqueles digitais não bastam. Seja para os desejos, para as fúrias ou para os entretenimentos, cedo ou tarde precisamos de alguém que esteja de fato aqui, que corra o risco, que sofra e alcance a glória junto. E isso é cada vez mais raro, cada vez exige mais de nós, e cada vez menos queremos pagar o preço.
O sujeito bem vestido dá mais uma bicada em seu copo. Sua expressão não muda quando ele traga. Sempre pensei que gim fosse bebida forte, daquelas de se tomar fazendo careta, e o sujeito não parece sentir, impávido e infalível como Bruce Lee, se me permitem citar Caetano. Olho a marca do gim, penso se pode ser uma experiência, vai saber se eu mesmo não tenho frustrações a afogar no futuro. Chamo o barman e peço uma dose, apontando discretamente para o sujeito ao indicar a marca da bebida. O barman trás e bebo, o amargor do gengibre e a potência do álcool se misturam. Diabos, que bosta de bebida! Para o cara estar bebendo isso sem fazer careta, ou já tem o fígado malhado, ou merece mesmo sofrer. Merda, isso estragou minha noite. Peço a conta e me preparo para sair.
Quando o barman se aproxima de mim com a conta na mão, o sujeito bem vestido o para no meio do caminho e pergunta as horas. O barman diz: “Faltam quinze, mas relaxa. Pode sair. Seu trabalho por hoje já rendeu”.
“Beleza”, responde o sujeito. “Mas a partir de amanhã não venho mais. Vou pedir a conta na agência. Esse trabalho de anúncio vivo me dá no saco! E vocês poderiam pelo menos colocar água mineral na garrafa, e não essa da torneira!”
Essa coisa toda tem muita cara de mal-estar contemporâneo. Nossas relações, todas elas, relações com as outras pessoas, com o trabalho, conosco mesmos, com o futuro, estão todas podres, fedem a carniça, atraem abutres. Daí nos isolamos. Conviver com outros é correr o risco de ser chifrado, demitido, exposto, humilhado, e não conseguimos mais lidar com isso. Preferimos cachorrinhos, entrega total sem nenhuma cobrança. Preferimos nossos celulares, mundos particulares e customizados até onde permitem os templates. Todos os outros humanos são competidores, nossos rivais, nos destruirão assim que tiverem uma chance, uma brecha. Então preferimos a distância, estratégica, aquela que nos permite observar e ficar alertas.
Mas nenhum ser humano é uma ilha, já disse o poeta. Precisamos de algum contato, e aqueles digitais não bastam. Seja para os desejos, para as fúrias ou para os entretenimentos, cedo ou tarde precisamos de alguém que esteja de fato aqui, que corra o risco, que sofra e alcance a glória junto. E isso é cada vez mais raro, cada vez exige mais de nós, e cada vez menos queremos pagar o preço.
O sujeito bem vestido dá mais uma bicada em seu copo. Sua expressão não muda quando ele traga. Sempre pensei que gim fosse bebida forte, daquelas de se tomar fazendo careta, e o sujeito não parece sentir, impávido e infalível como Bruce Lee, se me permitem citar Caetano. Olho a marca do gim, penso se pode ser uma experiência, vai saber se eu mesmo não tenho frustrações a afogar no futuro. Chamo o barman e peço uma dose, apontando discretamente para o sujeito ao indicar a marca da bebida. O barman trás e bebo, o amargor do gengibre e a potência do álcool se misturam. Diabos, que bosta de bebida! Para o cara estar bebendo isso sem fazer careta, ou já tem o fígado malhado, ou merece mesmo sofrer. Merda, isso estragou minha noite. Peço a conta e me preparo para sair.
Quando o barman se aproxima de mim com a conta na mão, o sujeito bem vestido o para no meio do caminho e pergunta as horas. O barman diz: “Faltam quinze, mas relaxa. Pode sair. Seu trabalho por hoje já rendeu”.
“Beleza”, responde o sujeito. “Mas a partir de amanhã não venho mais. Vou pedir a conta na agência. Esse trabalho de anúncio vivo me dá no saco! E vocês poderiam pelo menos colocar água mineral na garrafa, e não essa da torneira!”
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