Catulo

A porta se escancarou de uma vez com um chute violento, e o pé que a chutou imediatamente se plantou no chão dando firme apoio ao cano escuro do bacamarte seguro pela mão que se apoiava naquele pé que invadiu a sala quente da casinhola em Engenho de Dentro, no meio da mata, banhada pelo sol do começo da tarde, e a voz que mandava no pé, na mão e no dedo diante do gatilho gritou furiosa:

“Catulo da Paixão Cearense, filho da puta! Tua hora chegou!”

O velho ergueu a cabeça desprovida de cabelos, olhou com os olhos por detrás dos óculos arredondados, com um rosto triste e uma boca murcha, segurou o violão levantado e falou, sem pressa e sem alteração:

“Quem me dera se eu morresse lá na serra, abraçado à minha terra, e dormindo de uma vez, ser enterrado numa cova pequenina onde à tarde a surunina chora sua viuvez. Coisa mais bela nesse mundo não existe, que ouvir um galo triste no sertão que faz luar. Parece até a alma da lua, que descansa escondida na garganta desse galo, a soluçar”.

E morreu ali mesmo, atingido pela bala que lhe entrou pelo lado esquerdo da cabeça e saiu pela orelha direita, pintando a parede caiada de miolos e de versos ilegíveis. E ninguém o enterrou cantando “Luar do sertão”. Aliás, pelo que se sabe, o cadáver ainda está lá, sentado e segurando o violão, descabeçado e podre, assombrando o casebre perdido na mata de Engenho de Dentro. E foi só depois de alguns anos que a cabeça que controlava a voz que mandava no pé que chutou a porta e na mão que segurava o bacamarte e no dedo diante do gatilho ficou sabendo que Catulo da Paixão Cearense já estava morto desde 1946.

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